Em entrevista exclusiva ao Portal Juristec, a advogada Jéssica Fogaça Silveira defende punição mais rigorosa e diz que a educação é a estratégia mais eficiente para enfrentar a questão racial no país

Por Carlos Araújo, especial para o Portal Juristec

O racismo no Brasil não é velado, pelo contrário é escancarado, o que se evidencia quando são analisados pontos como oportunidades no mercado de trabalho, distribuição de renda e condições desiguais de moradia.

A afirmação é da advogada Jéssica Fogaça Silveira, ouvida com exclusividade pelo PORTAL JURISTEC para comentar e analisar as consequências do caso que envolveu recentemente o casal de atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank.

No fim do mês passado, os dois filhos adotivos dos artistas, Titi, de 8 anos, e Bless, 6 anos, foram vítimas de racismo praticado por uma mulher em um restaurante português.

Para a advogada, o Brasil precisa investir em educação e em leis mais rígidas para evitar que casos assim continuem a se tornar rotineiros. Por enquanto, ressalta ela, embora tenha havido alguns avanços, a percepção de democracia racial no país ainda é “uma visão romancista”

Confira a entrevista:

PORTAL JURISTEC – Existem muitos casos de racismo no Brasil, mas nem todos ganham espaço na mídia porque, em geral, as vítimas não estão ligadas a celebridades. O Brasil possui canais de denúncias e um modelo de justiça eficientes para dar sequência a casos assim, quando as vítimas não têm projeção na mídia?

JÉSSICA FOGAÇA SILVEIRA – Não, não tenho dúvida que neste caso (racismo contra os filhos dos atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank) o episódio tomou maior proporção pelo fato de ter ocorrido com celebridades. Geralmente, quando as vítimas não têm projeção na mídia, apesar do Brasil possuir canais de denúncia, e existir sanção no nosso Código de Direito Penal Brasileiro, tanto para a prática de racismo, quanto de injúria racial, a ineficiência existe. As barreiras para acessar a justiça ainda são um grande problema. Os fatores de renda interferem indiretamente na decisão do processo, pois, um cidadão da classe baixa, sem condições financeiras, enfrentará muito mais dificuldades para contratar um bom defensor do que outro indivíduo mais abastado financeiramente.

Para a advogada Jéssica Fogaça, o Brasil precisa investir em educação e em leis mais rígidas para evitar que casos assim continuem a se tornar rotineiros

O que falta ao Brasil para ser considerado exemplo e modelo na punição de casos de racismo? Quais são os países do mundo que são referência no julgamento de casos de racismo?

Falta no Brasil penas ainda mais severas e implementação de políticas públicas. Apesar do racismo ocorrer em todo Brasil, aqui a impunidade assusta a sociedade. Acredito que o método mais eficaz para uma pesada investida anti-racial, seria o estabelecimento de pesadas condenações indenizatórias, no campo do direito civil. No entanto, com todas as deficiências enfrentadas, o Brasil e os Estados Unidos são os países referências nestes julgamentos.

O que exemplos como o visto no caso do casal Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso podem ensinar sobre o combate ao racismo?

O preconceito racial é algo que fica enraizado, por isso o primeiro passo para combater o racismo é desconstruí-lo e ajudar as pessoas ao redor a fazerem o mesmo. No caso do casal, eles agiram corretamente reagindo à ofensa, não agredindo, fazendo a denúncia e chamando a polícia no mesmo momento. Entretanto, acredito que o maior exemplo, não levando em consideração que a vítima era menor, foi mostrar que uma pessoa branca pode, e deve, defender a vítima de racismo.

O episódio do casal de atores ocorreu em Portugal. Em que nível o Brasil está quando comparado a outros países no quesito estrutura de proteção contra casos de racismo?

Acredito que o Brasil esteja no topo, comparado a outros países, tanto nas políticas públicas já implantadas desde o governo do Fernando Henrique Cardoso quanto nos dispositivos trazidos na lei e alterações do Código Penal Brasileiro. Além disso, a Constituição Federal trouxe significativos avanços, entre eles a configuração do racismo como crime inafiançável e imprescritível.

A senhora acha que o combate ao racismo no Brasil deve se dar no nível da educação ou da punição?

O combate ao racismo deve se dar no nível da educação, tanto dentro de casa quanto na escola. O papel da escola na desconstrução do racismo, preconceito e discriminação é de suma importância. A escola tem o papel de formar o aluno para o exercício da cidadania, do trabalho e continuar aprendendo ao longo da vida. Esta é a orientação da Lei de Diretrizes de Bases e das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino no Brasil. Portanto, o papel da escola é buscar meios através de bibliografia sobre as questões étnicas e raciais, nomear o tema para discussão em grupo de estudos e fomentar a criação de cursos para que os professores, técnicos, alunos, ou melhor, a comunidade escolar como um todo, possa se aprofundar nas causas e conseqüências da dispersão dos africanos pelo mundo e abordar a História da África antes da escravidão.

A legislação brasileira é boa ou deixa brechas que acabam beneficiando aqueles que praticam o racismo?

Apesar de vigorar há 20 anos, a Lei 7.716/89, que classifica o racismo como crime inafiançável, punível com prisão de até cinco anos e multa, é pouco aplicada. Como se vê, e segundo especialistas, a maior parte dos casos de discriminação racial é enquadrada no artigo 140 do Código Penal, como injúria, que prevê punição mais branda: de um a seis meses de prisão e multa. Isso significa que, na prática, a pena acaba sendo revertida em cesta básica ou prisões de alguns dias, quando o agressor é preso em flagrante, beneficiando sim aqueles que praticam o racismo.

No seu ponto de vista, o que deve ser feito no Brasil para que não ocorram casos de racismo?

Acho que embora tenha havido conquistas do movimento negro, infelizmente a situação ainda não é agradável e a percepção de democracia racial é apenas uma visão romancista. O racismo no Brasil não é praticado de forma velada, mas sim escancarada, especialmente considerando os aspectos estruturais e institucionais. As oportunidades no mercado de trabalho, a distribuição de renda, o percentual da população carcerária e as condições desiguais de moradia só ressaltam isso. Portanto, para começar devemos aceitar que a educação é a estratégia mais efetiva para combater esse mal.

Insistindo em um ponto importante: a senhora acha que a família e a escola têm um papel a cumprir para reduzir ou acabar com os casos de racismo? Por que isso não acontece hoje?

Com certeza. As famílias e escolas devem abordar esse assunto cada vez mais com as crianças, a questão racial é assunto de todos e deve ser conduzida para a reeducação das relações entre descendentes de africanos, de europeus e de outros povos. Só assim haverá o reconhecimento da existência, da necessidade de valorização e do respeito ao afrodescendente e a sua cultura. Isso ainda não acontece porque, para muitos, o racismo não existe mais. Quando deixarem de negar e começarem a desmantelar o racismo, escutarem as vozes das pessoas afro-descendentes que enfrentam os legados do passado e procuram uma justiça reparadora para que acabem com a impunidade, aí sim, a partir do momento que tomarem ciência desse grande problema, haverá soluções.