Norton Rafael/Especial para Juristec
Uma das principais vozes em defesa da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, o desembargador federal Newton de Lucca acredita que será necessário fazer uma espécie de peregrinação pelo país para “catequizar” a população sobre os benefícios da nova norma, que está prevista para entrar em vigor a partir de fevereiro de 2020 e vai regulamentar a Internet brasileira.
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De Lucca usa como exemplo a campanha em favor do Código de Defesa do Consumidor, realizada em meados dos anos 1990, para traçar um prognóstico do trabalho de conscientização que o judiciário precisará fazer nos próximos meses junto à população.
Para o desembargador, que esteve em Natal durante a semana para participar do I Seminário de Direito Digital, promovido pelo Núcleo de Estudos de Direito Digital (NEDDIG) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, o principal benefício da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais será a garantia de que o usuário estará completamente seguro navegando na internet.

Em entrevista exclusiva ao Portal Juristec, Newton de Lucca enalteceu o esforço coletivo para criação da Lei, mas lamentou o veto do presidente Michel Temer à criação de uma instituição reguladora nacional de proteção de dados que, na visão do desembargador, é fundamental para garantir a aplicação plena da Lei.
Mesmo assim, afirma, há um entusiasmo para que, a partir da entrada em vigor da norma, se crie um ambiente digital com mais segurança para o cidadão que trafega na internet.
Abaixo, confira os principais pontos da entrevista.
Como o Direito lida com a Internet?
O Direito sempre correr atrás dos fatos. Primeiro surgem os problemas naturais, na realidade social, e o Direito caminha atrás disso. É claro que o Direito não tem a mesma velocidade desses fatos. Ele [Direito] demora um pouco para absorver essa realidade e, depois, regulá-la. Demorou muito para que nós editássemos uma Lei de Proteção de Dados Pessoais, quando outros países, até mesmo da América do Sul, já tinham leis nesse sentido. Então, o Brasil ficou um pouco atrasado nessa parte de proteção de dados pessoais. Em compensação, nós editamos em 2014 o Marco Civil da Internet, que foi um avanço muito importante para a segurança digital.
Qual a principal diferença entre o Marco Civil da Internet e a Lei de Proteção de Dados Pessoais?
O Marco Civil da Internet é abrangente de todas as questões relacionadas ao Direito na internet. Todas não porque a gente fala de Marco Civil, mas, na verdade, ele não abrange tudo… Por exemplo, o Marco Civil não tem normas sobre comércio eletrônico. Mas o Marco fixou fundamentos, princípios, objetivos da Internet. Já a Lei de Proteção de Dados Pessoais é bem mais específica. É a questão de nós realmente fazermos como faz a Europa, ou como faz aqui na América Latina – desde os anos 2000 a Argentina e o Uruguai desde 2008 -, e que protege os dados pessoais do cidadão. Hoje, os nossos dados são negociados livremente por aí, as pessoas sequer sabem que os dados que cedem estão sendo vendidos. Então, a lei veio para regular isto. Não se pode usar os dados de qualquer pessoa indiscriminadamente, sem ele saber porque está sendo usado, para qual fim. Estritamente, quando você coleta os dados dentro dos limites para realizar aquele negócio. Você vai comprar uma camisa não tem sentido pedir o tamanho do seu pé, que depois essa informação é vendida para vendedores de calçados mandarem e-mails oferecendo serviços. Então é isso que o Brasil agora está reproduzindo, ou seja, aquilo que foi feito na Europa, em 2016, e que entrou em vigor, o chamado Regulamento Geral de Processamento de Dados.
O que muda para o usuário com a nova Lei?
Muda que ele [usuário] vai estar muito mais protegido. Quando a Lei entrar em vigor, a partir de fevereiro de 2020, o cidadão estará completamente respaldado por uma norma que vai protegê-lo. Hoje, o usuário está totalmente desprotegido na Internet.
Mas como fazer para o usuário entender que ele tem direito a proteger os dados pessoais?
Haverá a necessidade de se fazer um verdadeiro trabalho de conscientização, assim como aconteceu na década de 90, quando saiu o Código de Defesa do Consumidor. No início, os consumidores não tinham noção do que aquilo significava. Eu fui um dos professores que peregrinaram de Norte ao Sul do Brasil para explicar o que era o Código de Defesa do Consumidor.
Então a Lei de Proteção de Dados é o Código de Defesa do Consumidor da Internet?
Não deixa de ser um Código de Defesa do Internauta, ou Código de Defesa dos Dados do Internauta, poderíamos dizer dessa maneira. Haverá de se fazer todo um trabalho de catequese para informar a população sobre esses direitos.
O Governo Federal vetou a criação de uma agência reguladora para aplicação da Lei. Qual impacto desse veto?
Os estudiosos do assunto, que viram como a coisa se deu na Itália, na Espanha, na França e na Alemanha… o Direito comparado mostra que é muito difícil dar certo a proteção de dados se você não tiver uma autoridade garantidora. O presidente Michel Temer – e eu tive até pessoalmente com ele falando sobre isso – foi obrigado a vetar não por ele ser contra a existência dessa autoridade nacional de proteção de dados. É que não era possível criar nessa época eleitoral despesa adicional, que ficaria para o próximo presidente arcar com o custo orçamentário. Ficou agora um impasse. Ou será feita outra Lei – o Executivo faz uma nova Lei e envia o projeto para o Congresso, para ser aprovado – ou então pode ser resolvido por medida provisória, criando cargos. É importante ficar claro que não se cria apenas a autoridade nacional de proteção de dados, mas também um conselho nacional de proteção de dados que vai trabalhar em conjunto com a autoridade nacional.
Recentemente veio à tona o escândalo envolvendo o vazamento de dados pelo Facebook. É possível que casos semelhantes aconteçam no Brasil quando a Lei de Proteção de Dados entrar em vigor?
É possível, sim. Uma nova profissão que eu acho que vamos precisar ter no Brasil é exatamente um especialista em gestão de dados pessoais, um homem que entenda de informática, direito e gestão. A União Europeia estabeleceu no seu RGPD que qualquer empresa que lide com dados de pessoas físicas ou jurídicas precisa ter um responsável por esses dados e, se não houver a obediência da segurança que é estabelecida no regulamento geral, pode haver uma multa da ordem de £ 2 milhões. Ou seja, algo astronômico. Então, assim como existe na gestão empresarial a sociedade aberta tem que ter um homem especialista para dar as informações ao mercado, o chamado Diretor de Relações com o Mercado, as empresas vão ter que ter um gestor para coordenar todos esses dados. Não existe, na prática, esse profissional. Ele vai precisar ser formado.
A ideia de que a Internet é campo de ninguém acaba com a Lei de Proteção dos Dados…
Esse conceito de que a Internet é campo de ninguém não passa de um ideal romântico, que foi proclamado como independência da Internet. Acreditava-se que o mundo de concreto e de aço tinha feito apenas bobagens e, com o advento da Internet, as relações interpessoais seriam diferentes. Essa visão, um tanto quanto romântica, existe ainda até hoje, aqueles que falam que não deve haver nenhum tipo de regulação digital. Eu sou totalmente contra essa ideia [de não regulação]. Eu acho que a anomia jurídica, quer dizer a ausência de normas jurídicas, só prejudica os que são mais fracos. Os mais fortes vão sempre ter um poder muito maior no mercado, se não houver regulamentação nenhuma. Mesmo com a regulamentação, é bem verdade, a gente sabe que há pesos diferentes. É o que sempre digo sobre o Código de Defesa do Consumidor. O que o Código de Defesa do Consumidor fez foi dar uma superioridade jurídica ao consumidor porque ele é a parte fraca na relação de consumo. Então, você tenta, com o direito, dar um equilíbrio. Porém, mesmo com o código, o consumidor segue sendo a parte mais fraca. Quando um sujeito vai pedir um empréstimo bancário será que ele está na igualdade de condições com o banco? Ou quando ele contrata o seguro em uma seguradora, será que ele não está em desvantagem? É claro que ele está em desvantagem por causa da inferioridade econômica. Então o Código tenta equilibrar um pouco essa relação. O que deve ocorrer na internet é a mesma coisa. A gente não pode deixar que os grandes grupos prevaleçam. Uma grande conquista do Marco Civil da Internet foi estabelecer a neutralidade da rede, que é exatamente para fazer com que todos sejam tratados de forma equânime.