Ao impetrar um Habeas Corpus para apontar erro no procedimento do reconhecimento pessoal de alguém acusado de cometer crime, as defesas precisam indicar que o fator racial tem papel determinante no caso concreto.

A orientação foi dada pela ministra Daniela Teixeira, do Superior Tribunal de Justiça, durante o “Seminário Internacional Provas e Justiça Criminal”, sediado pela corte na semana passada para discutir o tema.

Esse ponto é relevante porque o reconhecimento pessoal se submete ao fenômeno psicológico do viés da própria etnia: as pessoas geralmente são mais hábeis em reconhecer faces da sua própria raça do que de outras, como reconheceu o Conselho Nacional de Justiça.

Um exemplo banal foi dado pela juíza federal Adriana Cruz, que atua como convocada do Conselho Nacional de Justiça. Ela afirmou que, ainda que não haja semelhança entre ela e outras juízas negras que atuam em Brasília, há frequente confusão com as colegas. Ela questionou: se há dificuldade de diferenciar juízas negras, imagine para uma pessoa que foi vítima de um crime ter de diferenciar um suspeito de outro?

“É para se pensar de maneira prática todas as dimensões do racismo que acontece de forma concreta no dia-a-dia das pessoas”, continuou.

Isso faz com que a população negra, cliente preferencial da polícia brasileira, seja mais reconhecida erroneamente do que a branca. Um levantamento do Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais, de 2021, mostrou essa tendência.

O órgão analisou 28 casos, distribuídos por dez estados, em que o reconhecimento pessoal não foi confirmado e juízo e resultou em absolvição dos suspeitos. Destes, 83% tinham pessoas negras como as acusadas, parte delas encarceradas preventivamente.

Esse fator também potencializa os erros quando o reconhecimento é feito sem observar o rito estabelecido pelo artigo 226 do Código de Processo Penal.

Um dos casos mais graves é de um homem negro do Rio de Janeiro que teve a foto retirada do Facebook e exibida em álbum de suspeitos da polícia. Ele foi reconhecido por 70 vítimas, foi alvo de 62 ações e condenado 11 vezes até o STJ determinar o reexame dos casos.

Para a ministra Daniela Teixeira, apontar o desrespeito ao artigo 226 do CPP nas petições de HC não dá a dimensão correta do problema.

“Fica a sugestão para os que são advogados: coloquem esse dado. Não basta dizer que a foto apresentada não estava visível. Diga que o suspeito faz parte de uma população que constantemente é vista aos olhos dos brancos como igual. Isso vai nos dar um dado que a gente não tem”, disse.

Racismo estrutural

O alerta permitiria enfrentar o pequeno percentual de casos que chega às cortes superiores, mas passa longe de resolver o problema.

Procuradora do Distrito Federal, Anamaria Prates Barroso apontou que a questão da raça é proeminente no momento da prisão e encarceramento, mas acaba diluída ao longo do processo.

Ela destacou que raramente alguém vai dizer que abordou ou prendeu um suspeito pelo fato de ele ser negro. Ainda assim, a pessoa abordada ou presa terá sido alvo de uma abordagem feita de maneira diferente em relação à população branca.

“O reflexo disso na questão das provas é mais que evidente”, declarou. Para a procuradora, deixar passar um inquérito viciado por um reconhecimento pessoal malfeito devido a uma questão racial sem dizer nada configura racismo.

“Ou trazemos o debate racial para o centro do debate jurídico ou vamos continuar enxugando gelo. Não vamos sair do lugar, nem entender porque não vemos o problema. Precisamos reconhecer as falhas para ter esse viés dentro do processo”, defendeu.

Fábio Esteves, juiz do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, abordou esse viés ao afirmar que as pessoas só conseguem pesar o racismo como algo concreto, específico e individualizado ou como algo estrutural, despersonalizado, “que deve acontecer, mas nós não somos responsáveis”.

“Uma questão importante para ser compreendida enquanto racismo estrutural é que ele é apropriado para isentar pessoas de responsabilidade. Entre os pilares para construir o racismo estrutural está o aspecto ideológico e jurídico também”, opinou.

Segundo o magistrado, isso gera uma dificuldade de entender que, embora a lei seja para todos, a aplicação do artigo 226 do CPP não pode ser universalista, como a experiência mostra.

“Estamos enxugando um gelinho aqui, outro ali. Não adianta os ministros resolverem um problema aqui, onde chegam 0,01% dos casos. A gente tem que descer no Brasil profundo e entender que ele é marcado e conformado pelo racismo”, disse.

FONTE: Conjur | FOTO: Reprodução/Acervo/Portal Juristec