Desembargador diz que fato, ’em alguma medida, foi provocado pela própria vítima’
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais absolveu dois irmãos acusados de chamar um segurança negro de “macaco” e de dizer, de forma pejorativa, “olha a sua cor”. O caso ocorreu no estádio Mineirão. Segundo os três desembargadores que assinaram a decisão, a vítima contribuiu para a “justificável ira” dos réus.
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Os réus são Natan Siqueira Silva e Adrierre Siqueira da Silva, e as ofensas foram feitas durante um jogo do Campeonato Brasileiro entre Cruzeiro e Atlético-MG, em novembro de 2019, em Belo Horizonte.
Houve tumulto entre as duas torcidas ao final da partida, e a Polícia Militar reagiu com gás de pimenta. Segundo a investigação, nesse momento, os dois irmãos tentaram acessar a tribuna de imprensa do Mineirão, mas foram barrados pelos seguranças; entre eles, Fábio Coutinho da Silva.
Segundo a acusação, Adrierre cuspiu no rosto de Fábio e afirmou que a mãe do segurança trabalhava na “zona”. Ele ainda xingou o profissional de “filho da puta”, “viado” e disse “olha a sua cor”. Já Natan teria chamado Fábio de “macaco” duas vezes. As ofensas foram gravadas, e o vídeo, periciado pela Polícia Civil.
Outra perícia solicitada pelos acusados apontou, por outro lado, que Natan chamou o segurança de “palhaço” e não de “macaco”. A defesa dos irmãos também argumenta que Adrierre não se referia à cor de Fábio, mas à sujeira que estava na mão do segurança. “Ele nem é negro, é, no máximo, pardo”, afirma Cristiane Aguiar, advogada da dupla, à Folha.
“Quem sofreu danos foram os meus clientes. Eles eram motoristas de app e foram expulsos da base do app, sofreram ameaças”, disse.
Na decisão, o relator do caso, desembargador Jayme Silvestre Corrêa Camargo, argumentou que a legislação permite que o magistrado não aplique a pena de injúria racial quando o ofendido provocou a ofensa. Segundo ele, o segurança utilizou a força física para isolar os torcedores, mesmo sabendo que no local já era possível sentir os efeitos do gás de pimenta.
“Os acusados, a princípio, agiram revoltados, em uma crescente e justificável ira, eis que sob o efeito de gás de pimenta e temendo por sua integridade física, fato este que, em alguma medida, foi provocado pela própria vítima, que insistia em impedir que eles, por evidente necessidade, se dirigissem até um ponto mais seguro do estádio”, escreveu.
Os desembargadores Valéria Rodrigues Queiroz e Guilherme de Azeredo Passos seguiram o relator. O Ministério Público não recorreu da decisão.
O acórdão foi publicado pelo tribunal em fevereiro e noticiado inicialmente pela Rádio Itatiaia.
Fábio discorda dos magistrados e diz que os acusados não sofreram nenhum tipo de agressão física ou verbal pela equipe de segurança. “[Os irmãos] queriam ter acesso à tribuna de imprensa e depois à torcida do Cruzeiro. Aconteceria uma catástrofe”, afirma à Folha.
Hédio Silva Jr., doutor em Direito pela PUC-SP e ex-Secretário de Justiça do Estado de São Paulo, diz nunca ter visto decisão semelhante. Para ele, o argumento dos desembargadores é inconstitucional, uma vez que nenhum delito é proporcional ao racismo.
“Indiretamente, isso se aplica apenas à transfobia e à homofobia”, explica ao citar o entendimento do STF de que esses dois crimes devem ser enquadrados na lei de racismo.
Para Alessandra Benedito, presidente da Comissão Nacional de Promoção da Igualdade da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), uma das estratégias do racismo é a culpabilização da vítima.
Outro argumento dos desembargadores contestado por especialistas é a negação de que Adrierre tenha sido racista ao dizer “olha a sua cor”. Para os magistrados, o acusado não pretendia ofender uma coletividade, como define a lei de crimes de racismo, “mas apenas atentar contra a honra da vítima, de forma individualizada”.
Por isso, segundo o relator, a denúncia do Ministério Público deveria ser de injúria racial.
“Quer dizer que só eu tenho essa cor no Brasil? Quando o Adrierre diz ‘olha a sua cor’, ele está dizendo sobre todas aquelas pessoas que têm a cor similar a minha”, afirma Fábio.
Adilson Moreira, doutor em Direito pela Universidade de Harvard e autor de vários livros sobre o tema, considera que a diferenciação dos crimes imposta pelos magistrados impede que pessoas brancas sejam condenadas por racismo. “Esses acusados não falariam isso para seguranças brancos, mesmo se estivessem ameaçados”, diz.
O Senado aprovou, em maio, um projeto de lei que equipara o crime de injúria racial ao de racismo, aumentando a pena para dois a cinco anos de prisão –hoje, o crime prevê pena de um a três anos. O delito também passa a ser inafiançável e imprescritível.
A proposta prevê ainda punição para os crimes cometidos em locais com a presença de público, como estádios de futebol. Também há acréscimo da pena quando as ofensas são proferidas por duas ou mais pessoas. O texto aguarda votação na Câmara dos Deputados.
Paralelamente à denúncia penal, Fábio processa os dois irmãos por danos morais e aguarda o andamento da ação.
Ele lembra que, na semana seguinte ao fato e à repercussão na imprensa, foi obrigado a redigir uma carta abdicando do suporte jurídico e psicológico da Esquadra, empresa que prestava serviço de segurança no Mineirão. A Folha não conseguiu contato com a Esquadra. A empresa faliu no início de 2021.
“Acabou que o episódio de racismo foi o menos vexatório para mim”, afirma Fábio.
Outros casos de racismo foram registrados nos últimos meses em estádios de futebol. Um dos mais recentes foi no Morumbi, em partida do Campeonato Brasileiro, entre São Paulo e Fluminense, no último dia 17. Na ocasião, um são-paulino foi acusado de imitar um macaco para ofender o torcedor adversário. A cena também foi gravada. Segundo a Polícia Civil, o torcedor do São Paulo foi identificado e ouvido.
Em abril, um torcedor do Boca Juniors foi detido na Neo Química Arena sob a acusação de ofender corintianos imitando um macaco. Ele, porém, pagou fiança e foi solto na manhã seguinte.
FONTE: Folha Online | FOTO: Reprodução