
Para a doutora em Direito Tributário Karolina Lins Câmara Marinho de Souza, é importante debater na refoma tributária a situação das gigantes da tecnologia que atuam no país e acabam não tendo a renda aqui auferida efetivamente tributada
Karoline Lins Câmara Marinho de Souza é Professora Adjunta do Curso de Direito da UFRN, Doutora em Direito Tributário pela UFPE
No debutar do século XXI Manuel Castells , na obra “A Galáxia da Internet”, foi capaz de enxergar, mesmo sem uma intenção explícita de prever o futuro, que já se testemunhava o “desenvolvimento gradual de um mercado financeiro global, independente, operado por redes de computadores, com um novo conjunto de regras para o investimento de capital e a avaliação de ações e de títulos em geral.”
A obra, que foi publicada em 2003, é apontada como uma das primeiras e mais importantes dentre as que analisa o ciberespaço como frutífero ambiente para transformações econômicas.
Passados 18 anos da publicação, não há como negar que, de fato, a internet preenche a nossa vida em diversos aspectos que jamais teriam sido imaginados mesmo pelos mais geniais literatos de obras futuristas.
Os avanços tecnológicos que aludem à denominada Revolução 4.0 permeiam o nosso dia-a-dia e, atualmente, se mostram inescapáveis no contexto da economia contemporânea, porque nos tornamos dependentes do Uber, Ifood, Netflix ou dos serviços de armazenamento em nuvem (icloud, Dropbox, onedrive, etc). A economia digital, já tão presente até 2019, aproximou-se ainda mais de nosso cotidiano a partir de 2020, com a pandemia do covid-19. Portanto, ela não é só o amanhã, é o hoje.
A internet movimenta a economia mundial e cria novos contornos para as antigas instituições inseridas no contexto de mercado. Assim, acompanhamos o surgimento e desenvolvimento das grandes corporações digitais, que, em literais fenômenos surgidos da “noite para o dia” tiveram os seus ativos valorizados em cifras que chegam às casas dos doze zeros.
Com o movimento de financeirização da economia, grandes empresas, antes voltadas à produção de bens de consumo passam a ser operadoras de capital financeiro. Desse modo, a necessidade de encontrar vias para a redução de seus custos alcança cada vez mais a busca por meios legais para reduzir sua carga tributária (planejamento tributário), e, dentre esses, a localização do estabelecimento empresarial ocupa lugar de destaque.
No que tange às grandes corporações do mundo da tecnologia, há uma tendência à sua localização em paraísos fiscais, conforme estudos desenvolvidos pela OCDE, o que ensejou a criação do BEPS (Base Erosion and profit shifting), que envolve uma série de medidas a serem observadas em conjunto pelos estados fiscais no intuito de reaver as bases tributárias que erodiam nos países desenvolvidos a partir da transferência de lucros para os países com tributação favorecida. Dentre essas medidas, encontra-se a necessidade de cooperação internacional para compartilhamento de informações no fito de reduzir as manobras jurídicas encontradas para escapar da arrecadação tributária.
Portanto, o desenvolvimento das grandes corporações da tecnologia pressupõe a existência de uma fluidez de capital incompatível com o interesse público atinente à arrecadação tributária, porquanto, ao passo em que esta é prejudicada nos países desenvolvidos e em desenvolvimento pela fuga de investimentos para os paraísos ficais, passa a repercutir fortemente sobre os fatos econômicos sobre os quais os Fiscos possuem eficiência na captação, como a tributação sobre a renda de pessoas físicas e jurídicas aderentes ao Simples, ou a tributação indireta destacada na fonte.
Se a conta desse Estado Fiscal não fecha, porque ele precisa cobrar tributos suficientes a cobrirem os gastos com serviços públicos, ressoa como obviedade que essa arrecadação recaia sobre quem não tem capacidade para dela fugir.
E assim é afetado o setor do empreendedorismo regional e local, que depende da força de trabalho para se desenvolver e dos incentivos advindos do Estado através de renúncias de receitas tributárias.
Se por um lado existem grandes multinacionais da tecnologia absorvendo a parcela de serviços que antes se supria com o consumo de mercadorias (vide a substituição do HD externo pelo serviço de armazenamento de dados em nuvem), por outro existem os empreendedores locais que perderam espaço para aquelas, bem como o Estado fiscal brasileiro que não consegue arrecadar a contento todas as receitas oriundas dos fatos econômicos gerados da atuação das empresas estrangeiras, sobrecarregando a tributação das empresas nacionais que permanecem sob constante vigilância do fisco.
Assim, as distorções de mercado que já existiam no contexto econômico brasileiro se acirram, conturbando o ambiente de negócios e provocando perdas financeiras aos empreendedores locais, razão pela qual se faz imperioso um pensar mais profundo no âmbito da política fiscal.
No último 05/06, os países do G7 (Estados Unidos, Canadá, França, Itália, Alemanha, Japão e Reino Unido), através de seus ministros das finanças, concordaram com o esboço de um acordo global sobre tributação de multinacionais no patamar mínimo de 15%. Isso significa que, caso realmente o acordo evolua para um Tratado Internacional, os signatários se comprometem a exigir das corporações tecnológicas, o percentual mínimo fixado, a partir de sua atuação relevante naquele território.
Denota-se, assim, a importância de se trazer à tona a questão da tributação das gigantes da tecnologia que atuam no país e acabam não tendo a renda aqui auferida efetivamente tributada. Essas multinacionais, a partir das suas estruturações jurídicas, muitas vezes não se enquadram nos critérios de residência existentes em nossa legislação ou os munícipios não estão ainda devidamente aparelhados para identificar a quantidade de serviços prestados por essas aos residentes dos municípios brasileiros.
Por isso, torna-se imprescindível a inserção do debate sobre a tributação das empresas de tecnologia no Brasil de forma prioritária na reforma tributária. O acordo formulado nos últimos dias é um sinal latente de que algo no mundo precisa ser feito, sob pena de um esmagamento maior da nossa economia já tão machucada.
A instituição de um ambiente fiscal cooperativo em escala global pode contribuir para o decréscimo da concorrência fiscal internacional, fazendo com que as empresas paguem os tributos nos países em que operam e cada país obtenha de volta a estabilidade em suas contas, promovendo, em consequência, a estabilização da economia.
Assim, a discussão em torno das propostas de reforma tributária deve envolver, necessariamente, a consideração de que a nossa realidade econômica perpassa, de forma inescapável, à crescente comercialização de bens e serviços tangíveis e intangíveis pela via digital e o Fisco, de seu turno, deve poder alcançar esses fatos econômicos para não perpetuar a sua repercussão mais gravosa sobre as empresas locais e pessoas físicas que não conseguem escapar da tributação.
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Karoline Lins Câmara Marinho de Souza é Professora Adjunta do Curso de Direito da UFRN. Doutora em Direito Tributário pela UFPE. Coordenadora do curso de Pós-Graduação em Direito Tributário da UFRN. Coordenadora do Centro de Pesquisas Fiscais – UFRN. Coordenadora do Direito EnCena – UFRN.
