
Capítulo I: Holdings como Instrumento de Planejamento Sucessório, Societário e Proteção Patrimonial
A holding, figura amplamente consolidada no direito societário brasileiro, representa sofisticado instrumento de organização patrimonial, sucessória e empresarial, tendo sido incorporada ao ordenamento jurídico nacional com a promulgação do Decreto-Lei nº 2.627/1940, posteriormente revogado pela Lei das Sociedades por Ações (Lei nº 6.404/1976), que, em seu artigo 2º, §3º, define expressamente a possibilidade de constituição de sociedades com o objetivo exclusivo de participação em outras sociedades, conforme segue:
Art. 2º Pode ser objeto da companhia qualquer empresa de fim lucrativo, não contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes.
[…]
§ 3º A companhia pode ter por objeto participar de outras sociedades; ainda que não prevista no estatuto, a participação é facultada como meio de realizar o objeto social, ou para beneficiar-se de incentivos fiscais.
No contexto contemporâneo, é utilizada em estruturas empresariais e familiares, sendo classificada, para fins do presente, em três espécies principais: holding pura, holding mista e holding patrimonial.
A holding pura tem por objeto social exclusivo a participação no capital de outras sociedades, atuando como centralizadora do controle societário, sendo conhecida como sociedade de participação. Já a holding mista, além da participação societária, exerce atividade empresarial própria, ampliando o espectro de atuação e potencializando sinergias operacionais. Por sua vez, a holding patrimonial, frequentemente utilizada em planejamentos familiares, destina-se à centralização, administração e proteção de bens imóveis e outros ativos, conferindo racionalidade à sucessão e blindagem patrimonial.
A escolha da forma societária para a constituição de uma holding, por sua vez, é decisão de elevada relevância estratégica.
As sociedades anônimas (S.A.), regidas pela Lei nº 6.404/1976, oferecem maior flexibilidade na negociação de ações e anonimato dos sócios.. As sociedades limitadas (LTDA), disciplinadas pelo Código Civil (arts. 1.052 a 1.087), apresentam simplicidade operacional, custos reduzidos e maior controle societário, sendo preferidas em contextos familiares ou de menor complexidade. A sociedade simples, por sua vez, é raramente utilizada, mas pode ser adequada em situações extremamente específicas.
A estruturação de holdings demanda análise minuciosa de aspectos tributários, sucessórios e societários. A centralização dos bens em uma holding patrimonial, por exemplo, permite a racionalização da sucessão, reduzindo custos e conflitos, ao possibilitar a transmissão de quotas ou ações em detrimento da partilha direta de bens.
Além disso, a holding viabiliza a implementação de cláusulas restritivas (inalienabilidade, impenhorabilidade, incomunicabilidade), conferindo proteção adicional ao patrimônio familiar. Sob o prisma tributário, a administração centralizada pode ensejar economia fiscal, sobretudo na gestão de receitas de aluguéis e dividendos, desde que observada a legislação vigente e as recentes alterações promovidas pela reforma tributária.
É importante ressaltar que, embora existam estratégias sofisticadas de proteção patrimonial e sucessória, sua concepção e implementação exigem conhecimento técnico aprofundado e análise personalizada das peculiaridades de cada núcleo familiar ou empresarial.
Capítulo II: Offshores – Conceitos, Estruturação e Utilização no Planejamento Patrimonial
O termo offshore, no âmbito jurídico e econômico, refere-se a entidades constituídas fora do país de residência dos seus beneficiários, geralmente em jurisdições que oferecem benefícios fiscais, regulatórios e de confidencialidade. A natureza jurídica das offshores varia conforme a legislação local, podendo assumir a forma de sociedades anônimas, trusts, fundações privadas ou outras estruturas societárias, sendo as jurisdições mais tradicionais as Ilhas Virgens Britânicas, Bahamas, Panamá, Ilhas Cayman, Luxemburgo e Singapura.
A constituição de uma offshore, desde que observados os preceitos legais e os princípios de transparência e compliance, é legítima e amplamente utilizada em planejamentos patrimoniais, sucessórios e empresariais internacionais.
Dentre os objetivos legítimos, destacam-se a proteção de ativos contra riscos políticos e econômicos, a facilitação da sucessão internacional, a otimização tributária (dentro dos limites da legalidade), a gestão de investimentos globais e a simplificação da administração de bens em múltiplas jurisdições.
A distinção entre offshore e holding tradicional reside, primordialmente, na localização e nos objetivos estratégicos. Enquanto a holding tradicional, constituída sob a égide do direito brasileiro, visa à centralização e proteção de ativos nacionais, a offshore é voltada à administração de ativos internacionais, oferecendo vantagens como a mitigação de riscos cambiais, acesso a mercados globais e, em determinadas circunstâncias, benefícios fiscais.
Contudo, a utilização de offshores demanda cautela redobrada, especialmente diante dos riscos de dupla tributação, regras de transparência fiscal internacional (como o Common Reporting Standard – CRS e o Foreign Account Tax Compliance Act – FATCA), e da necessidade de cumprimento das obrigações acessórias perante a Receita Federal do Brasil (Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior – CBE e Declaração de Imposto de Renda sobre lucros auferidos no exterior).
A transparência e o compliance são pilares indispensáveis na constituição e manutenção de offshores. A legislação brasileira, notadamente após a promulgação da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) e da Lei nº 13.254/2016 (Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária – RERCT), reforçou a necessidade de reporte e regularização de ativos mantidos no exterior, afastando qualquer associação automática entre offshore e práticas ilícitas.
Exemplos práticos de utilização de offshores incluem a constituição de sociedades para administração de imóveis em Miami, a criação de trusts para proteção de ativos familiares na Europa, ou a centralização de investimentos financeiros em fundos internacionais. Em todos os casos, a assessoria especializada é imprescindível para a estruturação adequada, considerando tratados internacionais para evitar a dupla tributação (Convenção Modelo da OCDE, Convenção Brasil-Portugal, entre outros), a legislação local e as exigências regulatórias brasileiras.
Em síntese, as offshores representam instrumentos legítimos e eficazes de planejamento patrimonial e sucessório internacional, desde que estruturadas com rigor técnico, transparência e absoluto respeito à legalidade. A complexidade do cenário internacional, aliada à constante evolução normativa, impõe a necessidade de acompanhamento especializado para a identificação de oportunidades e mitigação de riscos, sob pena de exposição a contingências fiscais e reputacionais de elevada gravidade.
Capítulo III: Impactos da Reforma Tributária sobre Holdings e Offshores
A recente reforma tributária brasileira, materializada pela Emenda Constitucional nº 132/2023 e por projetos de lei complementar em tramitação, inaugura um novo paradigma no sistema fiscal nacional, com profundas repercussões sobre estruturas de holdings e offshores. A magnitude das alterações, que abarcam tributos diretos e indiretos, regimes especiais, regras de transparência e mecanismos de combate à elisão e à evasão fiscal, impõe uma revisão crítica e detalhada das estratégias de planejamento sucessório, societário e patrimonial, tanto no âmbito doméstico quanto internacional.
No tocante aos tributos diretos, destaca-se a substituição do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), do Imposto sobre Serviços (ISS), do Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com unificação de bases e racionalização da apuração. Embora tais mudanças impactem, primordialmente, a tributação sobre o consumo, seus reflexos indiretos sobre holdings operacionais são significativos, especialmente na reorganização de cadeias societárias, na revisão de contratos de prestação de serviços intragrupo e na redefinição de políticas de preços de transferência.
No âmbito do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), a reforma propõe alterações substanciais na sistemática de apuração, com destaque para a tributação dos lucros auferidos por controladas e coligadas no exterior, a limitação da dedutibilidade de despesas financeiras e a restrição de regimes especiais, como o Lucro Presumido e o Lucro Arbitrado. A proposta de tributação automática dos lucros de offshores, independentemente de sua efetiva distribuição, representa verdadeira ruptura com o regime atualmente vigente, alinhando o Brasil às melhores práticas internacionais de combate à evasão fiscal, conforme preconizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no âmbito do Projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting).
A nova redação do artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/2001, em discussão no Congresso Nacional, prevê a tributação dos lucros de entidades controladas no exterior por pessoas físicas residentes no Brasil, à alíquota de 15%, com possibilidade de compensação de tributos pagos no exterior. Tal medida, se aprovada, exigirá a revisão de estruturas offshore, sobretudo aquelas utilizadas para diferimento de tributação e proteção patrimonial, impondo maior transparência e rigor no reporte de informações à Receita Federal.
No que tange às holdings patrimoniais, a reforma tributária traz impactos relevantes na tributação de receitas de aluguéis, ganhos de capital e distribuição de dividendos. A proposta de tributação de dividendos à alíquota de 15%, com isenção para micro e pequenas empresas, altera a lógica de distribuição de lucros, exigindo reavaliação das políticas de retenção e distribuição de resultados. Ademais, a extinção da dedutibilidade de juros sobre capital próprio (JCP) e a limitação de benefícios fiscais regionais e setoriais afetam diretamente a rentabilidade e a eficiência fiscal das holdings.
A reforma também reforça mecanismos de combate à elisão fiscal, com ampliação dos poderes da Receita Federal para desconsiderar atos e negócios jurídicos que tenham como objetivo principal a economia tributária sem substrato econômico relevante (artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, com redação dada pela Lei Complementar nº 104/2001).
No cenário internacional, a reforma tributária brasileira dialoga com tendências globais de transparência e cooperação fiscal, como a implementação do CRS, do FATCA e dos acordos de troca automática de informações. A obrigatoriedade de reporte de estruturas offshore, a exigência de beneficiário final e a criminalização de condutas de evasão fiscal impõem novos desafios à gestão de ativos internacionais, exigindo atualização constante e revisão de estruturas preexistentes.
Exemplo prático: uma família brasileira que detém ativos imobiliários nos Estados Unidos por meio de uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas deverá, após a reforma, avaliar a viabilidade da manutenção da estrutura, considerando a tributação automática dos lucros, a necessidade de reporte detalhado à Receita Federal e o risco de dupla tributação, mesmo diante de tratados internacionais. Simulações realizadas por escritórios de advocacia e consultorias tributárias indicam que, em determinados cenários, a manutenção da offshore pode resultar em carga tributária superior àquela incidente sobre investimentos diretos, exigindo reestruturação e eventual repatriação de ativos.
No contexto das holdings nacionais, a centralização de bens em pessoa jurídica pode perder parte de sua atratividade fiscal, diante da tributação de dividendos e da limitação de benefícios, exigindo análise criteriosa de custos, riscos e oportunidades. A adoção de cláusulas de proteção patrimonial, a revisão de contratos sociais e estatutos, e a implementação de políticas de governança corporativa tornam-se ainda mais relevantes para a perenidade dos negócios e a segurança jurídica dos sócios e herdeiros.
Conclui-se que o novo cenário tributário demanda atuação proativa, multidisciplinar e personalizada, capaz de identificar oportunidades, mitigar riscos e garantir a perenidade do patrimônio familiar e empresarial. A assessoria especializada, com domínio técnico e visão estratégica, é indispensável para a adaptação e o sucesso das estruturas de holdings e offshores diante das mudanças legislativas e regulatórias em curso.
Considerações Finais
A complexidade e a dinamicidade do ambiente jurídico-tributário brasileiro e internacional impõem desafios crescentes àqueles que buscam proteção patrimonial, eficiência fiscal e segurança sucessória. Holdings e offshores, quando estruturadas com rigor técnico e absoluto respeito à legalidade, permanecem como instrumentos legítimos e eficazes, mas exigem atualização constante, análise detalhada de documentos e informações, e acompanhamento especializado para a identificação de soluções sob medida. O futuro do planejamento patrimonial e sucessório será, cada vez mais, pautado pela transparência, governança e inovação, cabendo aos operadores do Direito o papel de protagonistas na construção de estruturas sólidas, éticas e perenes.
MATHEUS SANTOS
Em colaboração:
RUAN SOUZA
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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