O crime de racismo merece maior censura quando acontece no local de trabalho da vítima e diante de outras pessoas. Essa circunstância foi levada em conta na fixação da pena de um homem em patamar acima do mínimo legal. Referindo-se à cor da pele de uma estagiária da Ouvidoria Municipal de Santos (SP), ele disse que “tudo que começa com a letra ‘p’ não presta”. Uma mulher que estava na fila do órgão e um funcionário ouviram essa declaração, logo após o réu se recusar a ser atendido pela ofendida.

“Verifica-se na conduta do réu clara e evidente intenção de diminuir e discriminar a vítima em razão de sua cor e de sua raça, ferindo sua dignidade ao proferir ofensas, imotivadamente e na frente de terceiros, referindo-se à sua cor de pele”, destacou o juiz Leonardo de Mello Gonçalves, da 2ª Vara Criminal de Santos. Ele condenou o acusado a 2 anos e 4 meses de reclusão, mas substituiu a pena por serviços comunitários por igual período e pagamento de cinco salários mínimos (R$ 6,6 mil) à estagiária.

Para o julgador, “não há o que duvidar dos referidos depoimentos, uma vez que nada há nos autos que demonstre que a vítima e as testemunhas tivessem qualquer motivo para fazer afirmação falsa contra o réu”. O episódio aconteceu no balcão da Ouvidoria Municipal, no térreo do Palácio José Bonifácio, sede da Prefeitura de Santos, em 7 de fevereiro de 2023. O caso mereceu tratamento penal mais severo porque ocorreu após a injúria racial passar a ser tratada como crime de racismo.

Anteriormente tipificada no parágrafo 3º do artigo 140 do Código Penal, que o punia com reclusão de um a três anos, o delito de injúria racial teve a sanção elevada para dois a cinco anos e passou a ser descrito pelo artigo 2º-A da Lei de Racismo (Lei 7.716/1989), cuja redação é a seguinte: “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional”. A alteração foi introduzida pela Lei 14.532/2023.

Segundo o juiz, “a culpabilidade do réu excede aquela inerente ao tipo penal, visto que praticou injúria racial no ambiente de trabalho da vítima, na presença de seu colega de trabalho e de terceiros, evidenciando o maior grau de reprovabilidade de sua conduta”. Porém, por não ser o acusado reincidente em crime doloso e não ter cometido o delito com violência ou grave ameaça a pessoa, o juiz considerou “suficiente e recomendável” a substituição da sanção restritiva de liberdade por duas restritivas de direito.

Os requisitos para essa substituição estão previstos no artigo 44 do Código Penal. Em relação à prestação de serviços à comunidade ou entidade pública, caberá ao juízo da execução penal definir qual atividade e onde ela será exercida pelo réu, bem como fiscalizar o seu cumprimento durante o período estipulado na sentença. O acusado Carlos Roberto Fernandes dos Santos, um aposentado de 72 anos, já se manifestou que recorrerá da decisão. Ele ainda está no prazo de apresentação de suas razões de apelação.

Ofensa reprovável
O aposentado se dirigiu à Ouvidoria e fazia reinvindicações para o bairro onde mora. Em determinado momento, o funcionário que o ouvia alegou precisar sair do órgão para cumprir o seu horário de almoço. No entanto, o atendimento ao cidadão não seria suspenso, porque a estagiária daria sequência à demanda. Nesse momento, o cidadão afirmou preferir aguardar o retorno do servidor e, olhando fixamente para a vítima, disse a uma senhora na fila que “tudo que começa com a letra ‘p’ não presta”.

O funcionário declarou em juízo que ouviu a declaração racista do acusado, comunicando de imediato o fato à coordenadora da Ouvidoria. A responsável se dirigiu ao balcão de atendimento e indagou o munícipe sobre o que ele disse. Segundo ela, o réu demonstrou nervosismo, explicando que o “p” se referia ao “Pereira”, um “amigo” dele. Diante da menção de ser acionada a Guarda Civil Municipal, o aposentado foi embora, não retornando mais ao órgão.

Em seu interrogatório judicial, o réu negou ter falado a frase descrita na denúncia ou feito qualquer outra declaração preconceituosa. Ele alegou que sequer percebeu a cor da pele da estagiária, sendo fruto de “insinuação” do funcionário a acusação de que recusou o atendimento da vítima por motivo racial. O aposentado justificou a preferência por aguardar o servidor retornar do almoço, ao invés de ser atendido pela sua colega, ao fato de ele já ter ciência das suas reivindicações.

“A versão do acusado restou isolada dos demais elementos probatórios juntados aos autos, pois não só não foi corroborada por qualquer das testemunhas, como também pela ausência de motivos para que a vítima e as testemunhas lhe imputassem falsamente o delito de injúria racial. (…) Ficou cabalmente demonstrado durante a instrução criminal que o réu injuriou a vítima, ofendendo a sua dignidade, em razão da sua raça e da sua cor”, pontuou o juiz.

FONTE: Conjur | FOTO: Reprodução