Recentemente, uma advogada participou de audiência virtual enquanto “se deslocava”, situação que causou desconforto e gerou críticas tanto do juiz quanto dos demais advogados presentes no ato.

O episódio, embora chamativo, está longe de ser caso isolado na prática forense contemporânea. Em alguns contextos, situações como essa refletem desídia profissional; em outros, resultam da própria dinâmica acelerada da advocacia moderna.

A correria do dia a dia, os litígios em massa e a crescente digitalização do Judiciário vêm reformulando a liturgia jurídica, impondo novos desafios à preservação do equilíbrio entre respeito aos atos e à flexibilização de posturas.

Postura inadequada

No caso em questão, ao perceber que a advogada participava da audiência de maneira incompatível com a solenidade do ato, o magistrado registrou sua insatisfação, apontando a falta de atenção devida ao processo.

Embora tenha optado por não adotar providências formais, o juiz lamentou publicamente o ocorrido, ressaltando que “cada um arca com os ônus e bônus de sua atividade”.

A crítica reforçou a necessidade de preservação do respeito aos atos processuais, mesmo em tempos de flexibilização tecnológica.

Os demais causídicos presentes também se manifestaram, classificando a conduta como inadequada ao exercício da advocacia e reforçando a importância da postura ética e respeitosa nos atos judiciais.

A audiência foi encerrada em clima de lamento, mas sem aplicação de sanções disciplinares.

Comportamento reiterado

Diversos casos demonstram que situações semelhantes vêm se tornando frequentes em tribunais de todo o país.

Em junho de 2020, por exemplo, um advogado e sua cliente participaram de uma audiência trabalhista em um carro, após “descobrirem” que o ato seria remoto.

O juiz do Trabalho, ciente da situação, optou por conduzir a audiência normalmente, priorizando a celeridade e a efetividade processual. Nesse caso, a adaptação foi compreendida como necessária e justificada.

Situação semelhante ocorreu no TRT da 15ª região, onde um advogado realizou sustentação oral em um carro em movimento. A desembargadora Larissa Scarabelim, após o ato, advertiu o causídico. Posteriormente, o advogado justificou a improvisação em razão de uma emergência médica envolvendo sua esposa.

Em outro episódio, no âmbito da 4ª turma recursal do TJ/BA, um advogado participou de audiência deitado em uma rede.

Apesar de ter obtido provimento parcial em favor de sua cliente, o comportamento foi alvo de críticas severas dos magistrados, que lamentaram o desrespeito à liturgia do ato e classificaram a situação como “motivo de chacota”.

No Juizado Especial da Bahia, uma advogada foi repreendida ao participar de audiência enquanto dirigia. A juíza de Direito Nícia Andrade enfatizou que a sustentação oral deve ser conduzida com seriedade, reforçando que “a liturgia da sustentação ainda continua”.

Até mesmo no STJ houve episódio similar. Durante sessão da 1ª turma da Corte da Cidadania, uma advogada foi advertida ao aparecer dirigindo enquanto realizava sustentação oral.

O presidente da turma, ministro Gurgel de Faria, lamentou o episódio, pontuando que “aqui é um tribunal, não uma pista de corrida”. Ministra Regina Helena Costa também reforçou a necessidade de respeito às formalidades, considerando a conduta como afronta à solenidade do ato.

E quando são os magistrados?

A tensão entre modernidade e liturgia não se restringe à advocacia.

Em 2022, o ministro Luís Roberto Barroso participou de sessão do STF em um carro, após enfrentar congestionamento a caminho do aeroporto, onde havia reservado espaço para acompanhar o julgamento. Posteriormente, já no local, retomou sua participação em ambiente adequado.

Outro exemplo ocorreu com o ministro Gilmar Mendes, que, também por atraso em deslocamento, precisou votar em sessão plenária do STF enquanto ainda se encontrava no carro.

Esses episódios ilustram que, mesmo nos mais altos graus da magistratura, a realidade impõe, ocasionalmente, soluções práticas.

Aviltamento ou sintomas de modernidade?

Em meio à explosão de processos judiciais – especialmente nas áreas de Direito do Consumidor, Bancário e Trabalhista -, disseminou-se a prática da contratação de advogados audiencistas, profissionais chamados exclusivamente para participar de audiências, muitas vezes sem um envolvimento prévio mais aprofundado com o processo.

Esse fenômeno reflete uma lógica de volume e produtividade que, embora funcional para a dinâmica contemporânea, contribui para o aviltamento da profissão. Enfraquece-se, assim, a imagem da advocacia tradicionalmente associada à dedicação técnica e ao respeito à liturgia processual.

Mesmo fora do contexto da advocacia em massa, a rotina dos advogados é marcada por intensa sobrecarga e múltiplos compromissos simultâneos.

Nesse cenário, a realização de audiências em locais improvisados, como dentro de veículos, tornou-se uma realidade. Embora frequentemente criticada, essa prática nem sempre decorre de negligência, mas sim de uma adaptação necessária diante das circunstâncias.

Naturalmente, surge a reflexão: é possível condenar, de forma indistinta, todas as adaptações práticas como afrontas à liturgia? A transformação digital e a aceleração da vida profissional impõem novos desafios, exigindo da advocacia – assim como do Judiciário – uma postura de equilíbrio entre o respeito às tradições e a adequação às novas realidades.

Se até magistrados recorrem à tecnologia para garantir a continuidade dos atos processuais, torna-se legítimo reconhecer que, em certas situações, o bom senso deve prevalecer sobre a rigidez formal.

A liturgia jurídica, mais do que nunca, precisa preservar seu valor simbólico e civilizatório, mas sem fechar os olhos para as exigências práticas da advocacia contemporânea.

FONTE: Migalhas | FOTO: STJ