
A 6ª turma do STJ negou, por unanimidade, RHC interposto no contexto da Operação Hinterland, que investiga organização criminosa transnacional envolvida em tráfico internacional de drogas e lavagem de dinheiro. A defesa requeria o desentranhamento de provas obtidas por meio do aplicativo criptografado SkyECC, alegando ausência de cadeia de custódia e origem duvidosa dos dados fornecidos por autoridades francesas.
Para o relator, ministro Rogério Schietti Cruz, as provas obtidas via cooperação com a França são presumivelmente legais e compõem apenas parte de um conjunto probatório robusto, formado também por diligências da PF. O ministro ainda pontuou que a suposta ilicitude exigiria análise aprofundada, inviável pela via do habeas corpus.
O caso: Operação Hinterland
A Operação Hinterland foi deflagrada para desarticular uma rede criminosa com atuação internacional, voltada para o tráfico de grandes cargas de drogas e a subsequente lavagem de capitais. No curso das investigações, conduzidas pela PF, foram utilizadas diversas ferramentas probatórias, como quebras de sigilo bancário, fiscal e telemático, além de flagrantes e apreensões.
Um dos principais elementos de prova veio do aplicativo criptografado SkyECC, usado pelos investigados para comunicação sigilosa. As conversas interceptadas foram obtidas por meio de cooperação internacional com autoridades da França, que já investigavam o uso do aplicativo por organizações criminosas.
As informações foram compartilhadas com o Brasil com base em acordo de cooperação jurídica penal vigente entre os dois países. A partir desse compartilhamento, a defesa passou a questionar a validade da prova digital, argumentando que os dados carecem de rastreabilidade e respaldo judicial formal.
Análise da prova e precedentes
O relator, ministro Rogério Schietti Cruz, rejeitou os argumentos por considerar que a análise pretendida exigiria cognição aprofundada, o que é incompatível com a via estreita do habeas corpus. O ministro ressaltou que “as provas oriundas do aplicativo não são o único elemento probatório dos autos”, destacando que a investigação da PF também se sustenta em quebras de sigilo bancário, fiscal e telemático, além de apreensões de drogas e prisões em flagrante.
Em seu voto, o relator frisou que os temas suscitados pela defesa demandariam exame detalhado dos autos, inviável na via eleita. Schietti também relembrou que a Corte já analisou matéria semelhante nos julgamentos do RHC 193.520 e do HC 899.244, ambos no contexto da mesma operação, tendo afastado a alegação de ilicitude da prova proveniente do SkyECC.
“A prova questionada pela defesa é apenas uma das fontes probatórias que instruíram a denúncia objeto deste recurso, isso só reforça a compreensão de que é por demais precipitada o desentranhamento dos autos das provas digitais obtidas a partir do SkyECC nessa fase processual, em que a instrução probatória ainda está em trâmite, porque, ainda que desconsiderados os diálogos obtidos por meio deste aplicativo, certo é que a inicial acusatória ainda permaneceria amparada em indícios mínimos de autoria e em prova da materialidade dos crimes nela descritos.”
Cooperação internacional
O voto também se ancorou no princípio da presunção de legalidade das provas produzidas no âmbito de cooperação internacional, conforme o Acordo de Cooperação Judiciária em Matéria Penal entre Brasil e França (Decreto 3.324/99). Para o ministro, “não cabe ao Judiciário brasileiro examinar a legalidade de atos de investigação conduzidos por autoridades estrangeiras, exceto em caso de prova cabal de ilegalidade – o que não teria ocorrido nos autos”.
Segundo Schietti, a documentação foi regularmente recebida pela PF, submetida à perícia oficial e integralmente disponibilizada à defesa, inclusive por meio de link hospedado em nuvem, sob controle da Justiça Federal. Ele enfatizou ainda o princípio da boa-fé e o da “lex diligentiae”, conforme previsto no art. 13 da LINDB.
Pluralidade probatória
Outro ponto ressaltado foi a pluralidade de fontes probatórias. O relator destacou que os dados oriundos do SkyECC não constituem a origem exclusiva da acusação, sendo apenas parte de um conjunto de provas que inclui, entre outros elementos, quebras de sigilos bancário, fiscal e telemático; apreensões de drogas e flagrantes e relatórios de inteligência da PF.
“Quanto à recepção dos dados oriundos da França, dentre eles a conversa e a planilha de Excel, a investigação já contava com vasto material probatório acerca da autoria e da materialidade obtida mediante inúmeras diligências policiais realizadas pela PF brasileira, tais como quebra de sigilo bancário, financeiro e fiscal, quebra de sigilo telefônico e telemático, além de apreensão de drogas e flagrantes. Somente depois é que foram apresentados os dados oriundos do aplicativo Sky ECC.”
Ausência de ilegalidade
Ao final de seu voto, Schietti concluiu que não se verifica qualquer coação ilegal flagrante que justifique a concessão do habeas corpus, especialmente diante da inexistência de indícios de que autoridades francesas tenham extrapolado os limites legais de sua jurisdição.
“Havendo a documentação sido obtida de forma regular no país que se encarregou das primeiras investigações, França, em obediência à lei local e, posteriormente, sido entregue às autoridades brasileiras para embasar ou simplesmente complementar investigações criminais que aqui já estavam em curso, inexiste qualquer impedimento à utilização dessas provas no processo. Não se mostra cabível que se pretenda, notadamente na via estreita do HC, que a Justiça brasileira se debruce a examinar a legalidade de atos jurídicos internos praticados na República francesa. (…) O acesso ao conteúdo de conversações do aplicativo SkyECC, ainda que no Brasil seja considerado sigiloso, de acordo com as leis locais, não é suficiente para violar a ordem pública ou a soberania nacional de que somente se poderia cogitar se a obtenção dessas informações tivesse ocorrido de modo ilícito na França, o que, eu enfatizo, não ficou inequivocamente demonstrado no caso dos autos.”
Por unanimidade, a 6ª Turma do STJ negou provimento ao recurso, acompanhando integralmente o voto do relator.
Processo: RHC 210.067
FONTE: Migalhas | FOTO: Gustavo Lima/STJ