
A seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil abriu uma apuração sobre venda de petições feitas por inteligência artificial. A entidade identificou um site que oferece aos clientes, ao preço de R$ 19,90, a criação de petições iniciais para ações em Juizados Especiais.
A empresa, sediada em Curitiba, elabora as peças de forma automatizada a partir de um formulário preenchido pelo interessado. O cliente informa o que motivou a ação, que pedido pretende fazer, qual o valor da causa e que provas podem ser anexadas. Feito isso, basta clicar em “gerar petição” e receber o documento em instantes, segundo o site.
A Corregedoria da OAB-RJ instaurou processo para apuração do caso. O presidente da Comissão dos Juizados Especiais Estaduais da seccional, Carlos Guedes, sustenta que a prática pode configurar exercício ilegal da advocacia. “Esse serviço é uma mercantilização indevida da atividade jurídica. Se houver participação de advogados, consideramos que há exercício ilegal da profissão”, diz.
A mercantilização da advocacia é proibida pelo artigo 5º do Código de Ética e Disciplina da OAB. Já o Estatuto da Advocacia veda serviços “que apresentem forma ou características de sociedade empresária”, conforme previsto no artigo 16, parágrafo 1º.
IA já chegou aos tribunais
A Justiça já tem identificado o uso de documentos feitos por inteligência artificial. A 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná decidiu, no dia 11 de abril, por exemplo, não conhecer de um recurso após identificar que a peça foi produzida com robôs.
A petição foi movida por um advogado dativo contra uma decisão que levou um réu ao Tribunal do Júri por homicídio. Conforme verificou o TJ-PR, o recurso citou trechos falsos da decisão original, inventou precedentes e até nomes de magistrados.
O desembargador Gamaliel Seme Scaff, relator do caso, advertiu o advogado para que se atentasse ao rigor ético da profissão. “O Poder Judiciário não está brincando de julgar recursos! Ao agir com tamanho descuido e desrespeito, o i. advogado não exterioriza a seriedade que o caso requer e que o seu cliente merece”, escreveu o magistrado.
Para Guedes, da OAB-RJ, o uso indiscriminado e displicente da IA é um risco à credibilidade da advocacia e à qualidade do Judiciário. “Uma possível consequência dessa prática é assoberbar os tribunais com ações, muitas vezes mal fundamentadas, e banalizar a Justiça”, avalia.
Plataforma nega mercantilização irregular
A empresa que oferece as petições só fornece os documentos para causas de até 20 salários mínimos, porque esse é o limite previsto em lei para que uma pessoa acione os Juizados Especiais sem assistência de advogado.
Segundo vídeos promocionais nas redes sociais da plataforma, os processos tratam principalmente de relações de consumo, que são ajuizados contra companhias aéreas, empresas de telefonia e serviços semelhantes.
A revista eletrônica Consultor Jurídico pediu explicações à empresa por meio de um número de WhatsApp disponível na página. O site enviou respostas automatizadas que, aparentemente, também foram geradas por inteligência artificial.
Segundo a empresa, a inteligência artificial garante “que a fundamentação legal e as jurisprudências necessárias sejam incluídas” na petição. O site negou que a venda dos documentos configure mercantilização da advocacia.
“O objetivo é facilitar o acesso à Justiça, permitindo que qualquer cidadão possa elaborar sua petição inicial sem a necessidade de um advogado, conforme previsto na Lei 9.099/95. A plataforma se limita a prestar um serviço de suporte na criação de documentos, garantindo que as pessoas possam reivindicar seus direitos de forma acessível e rápida”, diz a empresa
Site condenado
Uma empresa com práticas semelhantes foi condenada pela Justiça Federal do Rio de Janeiro a se abster de fazer publicidade irregular e captação de clientela. A sentença foi reforçada em abril do ano passado pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
O caso nasceu de uma Ação Civil Pública movida pela OAB-RJ. O site em questão oferecia “consultoria especializada” para pessoas interessadas em processar companhias aéreas por danos como cancelamento ou atraso de voos e extravio de bagagem. A empresa cobrava 30% da eventual indenização como pagamento pelo serviço.
A plataforma alegou, nos autos, que era um “blog de caráter informativo e educacional” e tinha como objetivo “orientar os consumidores sobre como proceder nos casos em que queiram buscar seus direitos”. A Justiça, porém, considerou que a atuação da empresa era irregular.
“A demandada não está constituída como sociedade de advogados e oferece serviços de consultoria jurídica, de forma indevida, captando clientela, mercantilizando a advocacia”, escreveu à época a juíza federal convocada Marcella Araújo da Nova Brandão, relatora do caso em segunda instância.
FONTE: Conjur | FOTO: Getty Images