
O Ministério Público não pode impor cláusula em acordo de colaboração premiada que não esteja prevista no ordenamento jurídico. E o réu não pode perder bens sem condenação transitada em julgado. Foi o que afirmou o ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli ao votar contra a antecipação do perdimento de bens de delatores da finada “lava jato”.
O Plenário do STF voltou a julgar nesta quarta-feira (23/4) um conjunto de recursos apresentados por ex-executivos da Odebrecht (hoje Novonor) que discutem o momento em que deve ser aplicada a perda dos bens e valores prevista em acordos de colaboração premiada.
São seis recursos contra decisões do relator, ministro Edson Fachin, que determinaram a perda dos bens de delatores da finada “lava jato” sem o trânsito em julgado de sentença condenatória. Entre os ativos, havia quantias depositadas em contas no exterior, imóveis e obras de arte. Os itens foram listados em acordos celebrados com o Ministério Público Federal e homologados pela então presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, em 2017.
Na sessão do último dia 9, Fachin votou para manter sua decisão anterior e validar o perdimento dos bens após a homologação judicial da delação, mesmo sem decisão final. O decano do STF, ministro Gilmar Mendes, abriu a divergência, considerando inconstitucional a antecipação dos efeitos penais sem decisão transitada em julgado. O ministro Dias Toffoli seguiu Gilmar nesta quarta. O julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Flávio Dino.
Os acordos não estabelecem em que momento deve ocorrer o perdimento de bens e valores. A discussão começou após Fachin atender a pedido da Procuradoria-Geral da República e executar a penalidade. As defesas recorreram, afirmando que a renúncia a bens e valores deve ocorrer apenas depois de eventual condenação criminal e após o trânsito em julgado. Os recursos em julgamento foram apresentados entre 2019 e 2021 e tramitam em sigilo.
Perdimento de bens
A pena de perdimento de bens foi adotada nos acordos de colaboração premiada fechados pelos ex-executivos da Odebrecht com o MPF. A medida está prevista na Lei da Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998), que estabelece a perda, em favor da União ou dos estados, de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática de crimes.
Os recursos estavam sendo discutidos em sessões virtuais do Plenário, entre 2022 e fevereiro deste ano. Porém, um pedido de destaque do ministro Dias Toffoli enviou a análise para julgamento presencial. Até então, Fachin era acompanhado pelos ministros Alexandre de Moraes e Flávio Dino e pela ministra Cármen Lúcia, que votaram para rejeitar os recursos e manter a perda imediata dos bens.
Gilmar abriu divergência, acompanhado de Toffoli. Eles votaram para impedir o cumprimento da pena de perdimento de bens antes do trânsito em julgado da condenação. O ministro Cristiano Zanin se declarou impedido de participar do julgamento. Com o destaque, a votação foi zerada e os posicionamentos podem ser mantidos ou reapresentados na discussão presencial.
Voto de Toffoli
Em seu voto, Dias Toffoli citou o julgamento do STF no Habeas Corpus 127.483, de sua relatoria. No caso, a corte fixou diversos parâmetros para os acordos de colaboração premiada. Entre eles, o de que os benefícios devem ser concedidos após análise de eficácia da delação, a ser conferida no momento da sentença, e não na assinatura do termo.
Toffoli mencionou que ministros há tempos demonstram preocupação com a imposição de penas pelo Ministério Público. A ministra Cármen Lúcia manifestou esse receio ao homologar os acordos de colaboração de executivos da Odebrecht, e o ministro Ricardo Lewandowski não homologou delação com cláusulas em que o MP invade competência exclusiva do Poder Judiciário, que detém o monopólio constitucional da jurisdição.
À época da decisão, Lewandowski disse que o Ministério Público não pode assinar acordos de delação premiada em que prevê perdão judicial e combina qual será o regime inicial do cumprimento das penas do delator. O máximo que o MP pode fazer é se comprometer a não oferecer denúncia contra o delator, e mesmo assim apenas no limite do que é permitido por lei. Só o Judiciário pode conceder perdão ou tratar do cumprimento de pena.
“Não há qualquer autorização legal para que as partes convencionem a espécie, o patamar e o regime de cumprimento de pena. Não é possível homologar um acordo com tais previsões”, disse Lewandowski naquele julgamento, ressaltando que validar delação com tais cláusulas seria permitir que o MP atuasse como legislador.
Nesta quarta, Toffoli mencionou o artigo “Colaboração premiada e auxílio judiciário em matéria penal: a ordem pública como obstáculo à cooperação com a operação Lava Jato”, dos professores da Universidade de Coimbra José Joaquim Gomes Canotilho e Nuno Brandão. No texto, os juristas afirmam que os acordos de delação premiada firmados pelo ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e pelo doleiro Alberto Youssef na “lava jato” são ostensivamente ilegais e inconstitucionais.
Segundo Canotilho e Brandão, acordos de colaboração não podem prometer redução da pena em patamar não previsto na Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), nem oferecer regimes de cumprimento dela que não existem nas leis penais. Caso contrário, haverá violação aos princípios da separação de poderes e da legalidade. Também por isso, esses compromissos só alcançam delitos tipificados por tal norma e não isentam o Ministério Público de deixar de investigar ou denunciar atos praticados pelo delator.
“Réu não pode sofrer execução de uma pena sem o prévio e devido processo legal. A persecução penal não se projeta nem se exterioriza com a manifestação de absolutismo estatal ou voluntarismo particular”, ressaltou Toffoli.
“O que se está a decidir é se o exercício do poder de punir deve seguir a Constituição Federal e a legislação. Admitir a automática antecipação de pena sem o devido processo legal, por mais popular que possa parecer, é cruzar a última fronteira que nos separa do Estado de Direito para o Estado policial”, opinou o ministro.
Punição válida
Para Fachin, não é possível concluir que a cláusula do acordo de colaboração premiada que estabelece a perda de bens deveria ser postergada até a sentença de condenação. Segundo o ministro, os acordos foram devidamente homologados e, por isso, não têm qualquer irregularidade. Assim, os deveres pactuados devem ser cumpridos pelos colaboradores.
Segundo o relator, a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) admite o perdão judicial e permite que o Ministério Público deixe de oferecer denúncia contra delatores em certos casos. Assim, avaliou ele, condicionar o perdimento de bens ao trânsito em julgado “contradiz os próprios fundamentos da colaboração premiada, cujo propósito é trazer eficácia à recuperação de ativos ilícitos e à obtenção de informações essenciais ao desmonte das organizações criminosas”.
Fachin afirmou que, após a homologação do acordo, não cabe ao Judiciário qualquer ingerência sobre os termos e a extensão dos benefícios negociados. O ministro ressaltou que, só nos processos que estão sob sua relatoria no âmbito da “lava jato” no STF, foram recuperados mais de R$ 2 bilhões, entre multas e perdimentos.
“Portanto, o perdimento imediato dos bens, baseado na confissão e nos elementos apresentados pelo colaborador, não apenas se alinha com a lógica da colaboração premiada como também evita a permanência de ativos ilícitos nas mãos de envolvidos, resguardando o interesse público.”
Cláusula inconstitucional
Gilmar Mendes, por outro lado, destacou que há elementos que permitem questionar a voluntariedade dos investigados ao fechar os acordos. Ele citou irregularidades durante a “lava jato”, como o conluio entre o então juiz Sérgio Moro e integrantes do Ministério Público Federal revelado pela “spoofing”.
O decano ressaltou que as cláusulas de acordos de colaboração premiada não são firmadas por livre vontade dos acusados, pois a liberdade deles está em jogo.
“O que se pretende ressaltar com base nessas duas primeiras advertências é que quando uma das partes negocia a sua liberdade e os seus bens em um contexto de ameaça de prisão ou de submissão a sanções penais de natureza grave, nunca há uma posição de plena igualdade entre acusação e defesa na celebração do negócio jurídico, razão pela qual deve-se ter cuidado com a utilização de uma lógica excessivamente civilista ou de plena e irrestrita liberdade contratual em um pacto que envolve o exercício do direito de punir.”
Gilmar também disse que determinar a perda de bens sem denúncia ou condenação seria como cruzar a “última fronteira que nos separa do Estado de Direito para o Estado policial”. Ele citou que a maior parte dos ex-executivos em questão não foi condenada. A denúncia contra um deles foi rejeitada, contra outro foi recebida e há um terceiro caso em fase de recurso.
De acordo com o magistrado, a cláusula que estabelece a perda de bens imediata configura violação à legalidade que decorre da pactuação do cumprimento antecipado dessa punição. Isso porque não há respaldo legal ou constitucional para a imposição de tal medida, nem um modelo de ampla discricionariedade no Brasil, no estilo do plea bargain dos EUA.
O ministro ainda apontou que a execução imediata das sanções de perda de bens desrespeita os limites estabelecidos pelos princípios do devido processo legal, da presunção de inocência e da individualização da pena (artigo 5º, XLVI, LIV e LVII, da Constituição).
Além disso, disse Gilmar, a medida contraria disposições da Lei das Organizações Criminosas que exigem a instauração de um processo, a produção de provas externas e autônomas de corroboração e a condenação definitiva dos colaboradores, com a avaliação da validade, da eficácia e da aplicação dos benefícios pactuados nos acordos em sede de sentença, antes que se possa exigir o efetivo cumprimento das sanções pactuadas.
“Em verdade, a aplicação das garantias fundamentais do processo aos acordos de colaboração premiada busca ressignificar este instituto e resgatá-lo de um contexto em que foi utilizado para a prática de um incontável número de arbitrariedades”, pontuou Gilmar.
“Este resgate permitirá, a meu ver, que tais acordos cumpram a sua função de servir para a obtenção de provas, para o esclarecimento de fatos de interesse público e para o julgamento efetivo e em prazo razoável de crimes graves, com a aplicação das penas corporais ou patrimoniais cabíveis e o ressarcimento de prejuízos financeiros, sem se converter, em si mesmo, em um instrumento de injustiça e de uso abusivo e expansivo da força.”
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FONTE: Conjur | FOTO: Andressa Anholete/STF