
Inconsistências nos relatos dos policiais militares levaram a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça a anular provas e absolver um homem da acusação de tráfico de drogas, feita meses depois de ele denunciar a prática de tortura por PMs.
O colegiado concedeu a ordem em Habeas Corpus e expediu ofício à Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo e ao Ministério Público de São Paulo para apuração de ilegalidades na atuação dos agentes.
O caso partiu de uma abordagem feita a um motociclista que quase bateu na viatura policial. O condutor confessou espontaneamente que tinha drogas na mochila e apontou o endereço e as características físicas do traficante.
Os policiais se dirigiram ao local, onde viram o suspeito em questão arremessar por sobre o muro, para uma casa vizinha, entorpecentes, uma balança de precisão e um celular.
Eles, então, bateram no portão da casa, onde foram recebidos pela mulher do suspeito, que autorizou a entrada. No local, foram encontradas porções de cocaína e dinheiro. O suspeito teria confessado o crime de tráfico de drogas.
A defesa levou o caso ao STJ porque a condenação a dez anos, dez meses e 20 dias de reclusão, em regime inicial fechado, baseou-se em busca domiciliar ilegal, conforme a jurisprudência da corte.
Relator, o ministro Rogerio Schietti observou que há inconsistências relevantes nos relatos policiais. E, como a diligência não foi registrada pelas body cams (câmeras corporais), isso faz com que a palavra dos agentes precise passar por especial escrutínio.
Palavra policial
As inconsistências começam pelo consentimento para a entrada dos policiais na casa. O suspeito disse em juízo que pediu para sua mulher abrir o portão só para que os policiais não o arrombassem, já que estavam tentando forçá-lo.
“A mera submissão à força policial não pode ser considerada consentimento livre e voluntário”, disse o ministro Schietti.
Há divergência sobre a dinâmica da diligência. Um dos agentes disse que foram recebidos na porta pelo casal, outro citou só a mulher. E um deles disse que drogas e balança de precisão foram jogadas por cima do muro para a casa ao lado, enquanto outro citou a casa dos fundos.
Além disso, o mesmo suspeito havia sido absolvido em um processo de tráfico de drogas dois meses antes, em razão de ter sido torturado com agressões físicas e choques elétricos por policiais militares do mesmo batalhão.
A tortura foi reconhecida pela Corregedoria da PM por meio de procedimento administrativo, e também pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Tortura policial
Segundo o suspeito e testemunhas, isso deu início a episódios de intimidação. Policiais passaram a frequentar a padaria onde a mulher trabalha e avisaram conhecidos de que estavam atrás do suspeito porque ele tinha “pendências” com a PM.
Segundo o ministro Schietti, chama a atenção a “curiosa coincidência” de outros policiais do mesmo batalhão receberem delação informal contra a mesma pessoa apenas dois meses depois da absolvição no primeiro processo.
“Ainda que não fossem exatamente os mesmos policiais que foram condenados pela tortura ao acusado, tratava-se de agentes do mesmo batalhão de ações especiais e o contexto acima descrito corrobora a tese de retaliação contra o paciente, por haver denunciado a tortura que sofreu por parte de alguns membros do grupo.”
A decisão de anular as provas decorrentes da invasão de domicílio e absolver o réu decorreu do conflito entre a versão acusatória e a do acusado, e pelas inúmeras contradições e incoerências nos depoimentos policiais.
“Cabe salientar, ainda, que não houve gravação audiovisual da ação policial, o que poderia haver dirimido as relevantes dúvidas existentes sobre a dinâmica fática, as quais, uma vez que persistem, devem favorecer o acusado, em conformidade com antigo brocardo jurídico (in dubio pro reo)”, complementou Schietti.
HC 768.440
FONTE: Conjur | FOTO: Gil Ferreira/Agência CNJ