
O reconhecimento da condição de anistiada política é suficiente para caracterizar a conduta ilegal do Estado e gerar a obrigação de indenizar. E o valor da indenização deve ser mais elevado se a vítima sofreu danos em razão de ser mulher.
Com esse entendimento, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região aumentou para R$ 500 mil a indenização por danos morais que a União deve pagar a Maria Thereza Goulart, viúva do ex-presidente João Goulart, pela perseguição política que ela e sua família sofreram durante a ditadura militar (1964-1985). A decisão é de 26 de novembro.
Em janeiro, a 4ª Vara Federal de Porto Alegre condenou a União a pagar indenização por danos morais de R$ 79,2 mil a Maria Thereza. O juiz Bruno Risch Fagundes de Oliveira entendeu que a ex-primeira-dama foi perseguida politicamente e exilada junto com seus filhos durante a ditadura.
Maria Thereza e a União recorreram da decisão. A ex-primeira-dama alegou que o valor da reparação deveria ser superior a R$ 1 milhão, uma vez que ela foi perseguida por 16 anos.
Já a União sustentou que havia prescrição, uma vez que Maria Thereza foi reconhecia como anistiada em 2008 e só moveu a ação em 2021. Além disso, argumentou que não foi demonstrada a ação ou omissão ilegal do Estado, nem foi comprovado o dano efetivo que ela sofreu.
Voto do relator
O relator do caso, desembargador federal Cândido Alfredo Silva Leal Junior, apontou que a 3ª Turma do TRF-4 costuma conceder indenização de R$ 100 mil a perseguidos pela ditadura militar. Porém, o caso de Maria Thereza é mais grave, segundo ele.
“Assim, conforme afirmado pelo juízo de origem, as provas trazidas aos autos efetivamente demonstram que, dos atos de exceção decorrentes do regime militar deflagrado em abril de 1964, certamente decorreram danos psíquicos que atingiram não apenas o ex-presidente destituído, mas também o seu grupo familiar, incluindo sua esposa, a autora desta ação, iniciando com a fuga do território nacional e prosseguindo com constante monitoramento, controle e vigilância ostensivos por parte do Estado Brasileiro, em cooperação com outros países, por mais de uma década e meia, enquanto a família esteve exilada no Uruguai e na Argentina”, ressaltou o magistrado, mencionando que os Goulart tiveram de ficar fora do Brasil de 1964 a 1979 (o ex-presidente morreu no exílio, em 1976) .
Leal Junior também usou os parâmetros do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, do Conselho Nacional de Justiça. “Ela sofreu também como mulher, sofreu como mãe, sendo exposta na frente dos filhos. Sofreu como esposa, porque estava sendo presa e conduzida porque era esposa de um Presidente da República. Ela foi tornada, como mulher, quase uma ‘coisa’, sendo obrigada a ficar nua, de forma injustificada, com intenção justamente de ser coagida, constrangida, reduzida enquanto pessoa, enquanto mãe, enquanto esposa, enquanto mulher.”
O magistrado ainda refutou a alegação da União de que os danos a Maria Thereza não haviam sido comprovados. Segundo ele, o reconhecimento da condição de anistiada política é suficiente para caracterizar a conduta ilegal do Estado e gerar a obrigação de indenizar.
Dessa maneira, o relator votou para aumentar a indenização para R$ 500 mil, com juros de mora a serem contados desde 1º de abril de 1964, data do golpe militar, o evento danoso que gerou o dever de reparar pela União.
Retomada da dignidade
Em seu voto, o desembargador federal Rogerio Favreto afirmou que Maria Thereza Goulart, por ser mulher de João Goulart, “talvez tenha sido uma das primeiras a sentir o peso do regime que impôs desprezo aos que com ele não concordavam, mesmo que de forma pacífica”.
“Próxima da autoridade máxima de nosso país em virtude de vínculo matrimonial, evidente, por tudo que consta nos autos, que sofra até os dias de hoje para superar o medo e a insegurança que lhe causaram aquele estado de coisas, retirando sua dignidade e esperança. Por pouco, aliás, não lhe retiraram a vida”, disse Favreto.
Ele lembrou que, quando ela veio ao Brasil para o enterro de sua mãe, os militares a impediram de comparecer ao velório. E citou que a sua prisão e a humilhação de ter de ficar nua na frente de agentes do regime geraram um trauma que se prolongou no tempo.
“A indenização mínima e razoável deve servir como mais uma retomada pela dignidade daqueles que tiveram seus direitos negados, aviltados e forçosamente roubados pelo regime da ditadura militar. Além do direito à verdade já restabelecido pelos recentes Governos Democráticos do país, a violência causada pelo Estado num contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964 merece reparação digna, servindo como reforço para que as instituições democráticas sejam sistematicamente defendidas e valorizadas pela sociedade brasileira”, declarou Favreto.
Histórico do caso
À Justiça, a viúva de Jango argumentou que o marido tinha uma trajetória empresarial e política bem-sucedida antes de ser deposto da Presidência da República. Além de empresário do ramo agropecuário, Jango foi deputado federal, ministro do Trabalho no governo de Getúlio Vargas e vice-presidente eleito por duas vezes seguidas, tendo assumido a Presidência após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961.
Maria Thereza alegou que em 1º de abril de 1964 teve de deixar a Granja do Torto, uma das residências oficiais, às pressas com os dois filhos, à época com oito e seis anos de idade.
Todos embarcaram para Porto Alegre com bagagem mínima, deixando para trás a maior parte dos pertences, como joias e roupas de grife, segundo alegou a viúva de Jango. Todo o rebanho de gado de suas fazendas foi saqueado, sustentou a defesa de Maria Thereza.
A família foi obrigada a se exilar no Uruguai até 1973 e na Argentina até 1975, tendo sido obrigada a migrar após golpes de Estado nesses países. A defesa ainda relatou um plano para sequestrar os filhos de Jango.
No processo, a União alegou que Maria Thereza não sofreu prisões, torturas ou agressões pelo Estado brasileiro, e que a viúva de Jango já reconheceu, em entrevistas, não ter sofrido privações econômicas durante o exílio. Com informações da Agência Brasil.
FONTE: Conjur | FOTO: Getty Images